terça-feira, 21 de julho de 2020

- um dia -

Um dia anulas a tua vontade, noutro dia um desejo. Um dia achas que podes abdicar daquilo em que sempre acreditaste e sempre defendeste. Não são assuntos de vida ou de morte, são pequenas coisas de que todos te dirão que podes abdicar. É só uma vez, pensas. Se calhar não é assim tão importante. Vives bem sem fazer finca pé naquela matéria, há coisas mais importantes, tens de saber relativizar, tens de saber aceitar o outro como ele é. Mesmo que, a dada altura, já não saibas muito bem quem és ou no que acreditas. Até que um dia, após muitos dias, estás cansada de não ouvirem exatamente o que dizes, estás cansada dos atrasos, da falta de atenção ao que falas, ou de acharem que te preocupas demais com assuntos mundanos. Estás cansada de te dizerem que não podes discutir, levantando o tom de voz. E tu, com medo de reagires de mais, reages de menos.
É isto. Um dia, quando reparas já não és bem tu. És uma espécie de sucedâneo do que já foste e dás contigo a ter saudades da maneira como defendias as tuas ideias. Aquelas que um dia deixaste de defender porque era cansativo explicar o que para ti era óbvio. E o mais caricato é que, quando te anulaste, o fizeste de forma consciente porque não querias repetir os erros do passado.
Viver é tramado, mas viver sem saberes muito bem quem és é muito pior.

sexta-feira, 6 de março de 2020

desafio da escrita dos pássaros #2.6


- deste vírus que me atormenta –

Terá sido o vento que o trouxe até mim,
Ou a saudade de me sentir abraçada?
Terá sido a ausência de um amor sem fim,
Ou a loucura de me julgar abandonada?

Quero respirar livremente,
Sem máscaras nem amarras que me prendam
Aos preconceitos de uma vida diferente,
À amargura de não me achar desejada.
E assim, soltei-me à chuva e dancei
Gritei que não podia mais esconder-me.
Fugi dos medos e da raiva escondida,
Travei batalhas com o meu inconsciente.

E quando me achava perdida,
No tumulto da saudade que afoga,
Julguei sentir o teu braço já esquecido
No meu sonho,
quase perdido,
Na minha cama,
tão vazia de agora.

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

desafio da escrita dos pássaros #2.5



A Matilde regressou hoje do outro lado do mundo. Sã e salva. E isso era tudo o que eu queria.

Quando ela me falou, pela primeira vez, na eventual ida, encolhi-me de medo. Ela já tão adulta e decidida e eu a sentir que era cedo demais. Nunca é o momento certo para as nossas crias partirem em aventuras arriscadas, verdade? Um aperto no coração e uma centena de "ses" a desassossegarem-me. E se adoece? E se é agredida? E se ela sofre? E se eu não a consigo ajudar? E se ela me falta? Um nó na garganta invadiu-me e não me largou durante 2 meses. Eu a tentar ser racional e positiva e a angústia a apoderar-se de mim.

A Matilde é médica e foi em missão salvar vidas. Vidas que valem tanto como as nossas, gente que tem os nossos medos e muitos outros que nem conseguimos imaginar. E eu, egoísta, com medo da segurança da Matilde. Se calhar o coração da Matilde é maior do que o meu, pensei. Se calhar, o meu coração devia ser tão grande como o da Matilde. Mas o meu coração está formatado para proteger todos os que do meu colo fazem casa. Eu sempre fui colo e sei que não quero ser o colo que sufoca, que não dá asas nem encoraja. E assim, contrariando os meus medos, dei-lhe um moleskin de folhas lisas para ela escrever as suas histórias, nesta viagem, que depressa se tornariam memórias de aprendizagem e de humildade.

Foi a experiência de uma vida - a repetir, diz ela.

O bloco regressou sem folhas em branco, o coração da Matilde regressou gigante e o meu... bem, o meu coração ficou muito orgulhoso por saber que a Matilde tem nela um pedacinho do colo que lhe dei.

A Matilde regressou hoje do outro lado do mundo. Sã e salva. E isso era tudo o que eu queria.

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020

desafio da escrita dos pássaros #2.4

Maria das Dores, meretriz afamada, com clientela fidedigna mas pouco digna, e a quem muitos preferiam chamar Maria dos Prazeres, saiu de casa apressada. Lábios vermelhos, decote vincado no peito roliço, cabelo apanhado no cocuruto, ancas delineadas pela saia justa demais, atravessou a avenida a correr e entrou num táxi que a levaria à consulta.

Maria sentia-se cansada mas, achando que não era doença, acreditava que havia naquela canseira mau olhado. Tinha ouvido falar que em Caminhos Tortos, pequena aldeia na serra, tudo se endireitava em casa do doutor. Não lhe sabia o nome mas parecia que o homem era santo ou adivinho mas sem bola de cristal. Deitará as cartas, pensou. Ou falará com os espíritos, sabe-se lá.

Deu ao motorista a morada e o homem, useiro e vezeiro naquele trajeto, arrancou.

A casa do doutor ficava no terreiro, perto da torre da igreja onde o sino marcava as horas a compasso. Eram 16h35 quando Maria das Dores tocou à campainha. Sem cerimónia, abriram-lhe a porta e levaram-na até à salinha onde o doutor a esperava. Em cima da mesa redonda de pé de galo, nem cartas, nem velinhas para chamar os mortos. Apenas um computador.

- C’um caraças, - pensou Maria das Dores - até parece que estou na Segurança Social.

- O que a traz por cá? - inquiriu o doutor.

Maria das Dores explicou o cansaço, as aflições, as noites mal dormidas com sonhos mal amanhados. As vozes que ouvia e não a deixavam sossegar, o medo de não acordar por culpa dos pecados cometidos. O doutor esticou-se na cadeira e aproximando-se da mesa começou a escrever no teclado do computador. A impressora cuspiu uma folha com letras miudinhas que o doutor lhe entregou.

- Maria, está na hora de mudar de vida. Siga as instruções que estão aqui nesta folhinha e vai ver que daqui a um mesito se sentirá como nova.

Ela levantou-se, pagou a consulta e saiu mais ligeira do que tinha entrado.

No táxi, de regresso a casa, leu de viés a folha com as instruções que o doutor lhe entregou. Procurou o nome do doutor e encontrou-o em letras pequeninas no rodapé da folha - Google.

- Ai Jesus, com este nome não admira que saiba menos do que eu!

E chorando o dinheiro gasto, abriu a janela e atirou o papel borda fora, rogando pragas à puta da vida.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020

desafio da escrita dos pássaros #2.3

É hoje que vais? É hoje que sais?
Ou arriscas deixar para amanhã?

Bate a porta do passado bafiento e triste.
Salta pela janela que se abriu de novo,
encara o tempo como uma oportunidade.

Vê-te ao espelho. Ao espelho da alma.

Será um sorriso que se começa a formar?
Ou é o desdém de quem, finalmente, aprendeu a amar?

Corrijo - aprendeu a amar-se.

Tu, sem ti, quem és?

Nem a sombra duvidosa do passado, nem a vontade do futuro por vir.
Sem ti não és sol, nem lua, nem mar revolto, nem vontade de seguir.
Sem ti és cinza de lareira apagada, és resto que sobrou do jantar.

Vê-te gigante, imensa, sem medo de acreditar.

Onde guardaste aquele desejo escondido, aquela ousadia de querer?

Onde guardaste o rumo que julgavas perdido e a razão de saber ser?


Ah, caraças, Mulher. Não hesites.

Que sejas sempre tu quem arrisca vencer.

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2020

desafio de escrita dos pássaros #2.2


- Então, filha, já namoras? Vê lá se te despachas, não fiques para tia, se bem que no teu caso ficar para tia dava jeito a muita gente, os teus 6 sobrinhos até agradeciam e...

- Ai avó, não te chego eu, só assim, tua neta? 


- Pois, chegarás... Mas companhia para aquecer os pés também faz falta. Ó Julinha, não me digas que gostas de mulheres. Se é isso, ó filha, eu também me habituo à ideia e assim como assim era ela quem te aquecia os pés. 


- Prefiro homens, avó - ri-me. Há até um bem giro com quem me cruzo quando vou às consultas de dermatologia. 


- Ah, conta-me tudo! Afinal há moiro na costa. Espera lá, ainda se pode dizer "moiro na costa"? É que com isto do politicamente correto eu nem me atrevo a dizer provérbios! Chiça, no outro dia a Laurinda dizia "pois, toda a gente acha que a vaca da vizinha é mais gorda que a minha" e foi logo um ai jesus, que ela tinha chamado vaca à que mora lá ao lado, já nem me lembro do nome... Mas e então, esse tal mocinho, é jeitoso, bonitinho? E o que faz da vida? 


- É médico, avó.


- Ai cruzes, credo, filha. Mais vale só do que mal acompanhada! É que isso de médicos... nunca fiando. Acham sempre que sabem tudo e vai-se a ver e não sabem nada e lá andamos nós de cangalhas e quando damos por ela já temos um pé na cova e o outro quase lá a entrar. São os médicos e os padres – são cá uma raça!


- Então, mas desde quando é que os padres podem namorar?

- Pois, poderem não podem, mas vão namorando. Olha-se para eles, não partem um prato, é só água benta e o sinal da cruz, o tercinho na mão e o pai nosso na goela sempre pronto a debitar. Mas a verdade é que por um rabo de saias aquela batina já levantou mais vezes do que disseram a missa. Que tristeza…


quarta-feira, 1 de janeiro de 2020

- quando o Ludovico me embala -

O Ludovico sussurra-me ao ouvido que devo ter calma, procurar a paz, sentir sem medo e abraçar as decisões que 2020 trouxer. Aconselha-me a ter as conversas certas nos momentos mais indicados. Acato as instruções porque as sei sensatas e lúcidas: escreve, silver girl, deixa que sejam as letras a conduzir-te. Tu és capaz de muito mais do que aquilo que és agora.

Eu respiro fundo, tento ganhar essa consciência e eternizá-la em mim para que se faça justiça nos meus sonhos de menina já sendo mulher.

(sonhos estranhos os que tive há dias onde memórias tão enterradas resolveram despertar. Que medo de deixar de querer certas pessoas - fará isto sentido? Sim, faz. Que medo, repito baixinho)

O Ludovico persiste em mim e insiste em que eu não desista. Eu ouço-o, mais com o coração do que com os ouvidos. É uma música de fundo que me embala e dá vida e me eleva onde não sei chegar de outra forma. Já tenho a música, faltam-me as letras, penso. Se calhar é só fechar os olhos e deixar fluir. Se calhar é só viver sem me apartar da silver girl, dar-lhe corpo e asas e deixá-la ser gente ❤️


*Ludovico Einaudi, compositor que me embala a vida