Os olhos vazios. As mãos
trémulas. O corpo hirto. Todo ele era desassossego e dor. Procurei-lhe os
traços que lhe conhecia desde criança, mas não encontrei. Saí do quarto a
correr. Precisava de ar e de tempo, precisava de reaprender a respirar ao som
do coração do meu pai que já não batia igual ao meu. A doença ditava outro
compasso.
Escondi-me no escritório. Esvaziei
gavetas, vasculhei álbuns de fotografias, reli cada linha por ele escrita,
sentei-me na poltrona que foi dele e com a caneta, que sempre lhe conheci,
desenhei corações. Corações toscos e tortos e assimétricos. E lembrei-me de
mim, pequenina, com medo do escuro e a mão grande, do meu pai, a fazer
conchinha no meu ouvido e a sua voz calma a dizer-me, eu estou aqui, não
precisas de ter medo.
Perdida nas memórias, encontrei
toda a força de que precisava. E voltei ao quarto, dia após dia. Embalei-o,
contei-lhe histórias, desenhei corações (os corações, sempre os corações) na
sua mão. E pus a tocar as músicas que dançávamos quando era miúda e dancei-as
sozinha para que visse que eu ia ser capaz de sobreviver à sua morte. E beijava-lhe
a testa com carinho e entrelaçava o dedo mindinho no dele e dizia-lhe, vai
ficar tudo bem, pai, promessa de pai e de filha.
E chegou o dia em que lhe beijei
a testa já fria e voltei ao escritório. Sobre a secretária, preso à moldura da
nossa foto, um envelope fechado. Quanto medo e quanta esperança lá cabiam?
Quanta saudade, quanta ternura? E naquela letra, só dele, li: Para ler e reler
nos momentos difíceis. És muito mais do que a lágrima que agora te sufoca. És o
meu futuro sempre tão presente. Adoro-te, Pai.