terça-feira, 27 de novembro de 2018

- os corações, sempre os corações -


Os olhos vazios. As mãos trémulas. O corpo hirto. Todo ele era desassossego e dor. Procurei-lhe os traços que lhe conhecia desde criança, mas não encontrei. Saí do quarto a correr. Precisava de ar e de tempo, precisava de reaprender a respirar ao som do coração do meu pai que já não batia igual ao meu. A doença ditava outro compasso.

Escondi-me no escritório. Esvaziei gavetas, vasculhei álbuns de fotografias, reli cada linha por ele escrita, sentei-me na poltrona que foi dele e com a caneta, que sempre lhe conheci, desenhei corações. Corações toscos e tortos e assimétricos. E lembrei-me de mim, pequenina, com medo do escuro e a mão grande, do meu pai, a fazer conchinha no meu ouvido e a sua voz calma a dizer-me, eu estou aqui, não precisas de ter medo.

Perdida nas memórias, encontrei toda a força de que precisava. E voltei ao quarto, dia após dia. Embalei-o, contei-lhe histórias, desenhei corações (os corações, sempre os corações) na sua mão. E pus a tocar as músicas que dançávamos quando era miúda e dancei-as sozinha para que visse que eu ia ser capaz de sobreviver à sua morte. E beijava-lhe a testa com carinho e entrelaçava o dedo mindinho no dele e dizia-lhe, vai ficar tudo bem, pai, promessa de pai e de filha.

E chegou o dia em que lhe beijei a testa já fria e voltei ao escritório. Sobre a secretária, preso à moldura da nossa foto, um envelope fechado. Quanto medo e quanta esperança lá cabiam? Quanta saudade, quanta ternura? E naquela letra, só dele, li: Para ler e reler nos momentos difíceis. És muito mais do que a lágrima que agora te sufoca. És o meu futuro sempre tão presente. Adoro-te, Pai.

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